sábado, 19 de janeiro de 2019

Sociedade sem Dinheiro

Uma da madrugada no aeroporto de Copenhaga, capital da Dinamarca, país portuário e fronteiriço entre a Alemanha, motor económico da Europa e a Suécia, país nórdico, pejado de natureza. O voo da Lufthansa aterrou já tarde devido a um atraso em Frankfurt, nova capital financeira da União depois do para mim já tão certo Brexit. E neste quadro, de repente dei por mim num átrio amplo e vasto de centenas de metros de comprimento por uns dez metros de altura de pé direito, de onde saíam comboios para a Suécia, assim como o metro para o centro da cidade e, deduzi eu, táxis, para onde bem quisesse. Vontade não me faltava para ir dar um salto até à Suécia, recanto onírico do mundo, no meu imaginário pelo menos, mas não era esse o plano. O metro para o centro já estava fechado e eu também já desejoso de chegar ao hostel, optei pelo táxi.

Como o país não aderiu à zona euro, a sua moeda Coroa Dinamarquesa ainda se mantinha, pensava eu… Então procurei a máquina de levantar dinheiro pelo tal átrio, onde via todos os tipos de automatismos que substituíam o ser humano àquela hora da noite. Assim alguém poderia dormir melhor ou estar desempregado também, dependendo do ponto de vista. Vi máquinas de bilhetes do metro, do comboio, umas do sistema ferroviário dinamarquês, outras do sueco, Também máquinas para comprar comida, até os jornais. Mas achar a tão habitual máquina de tirar dinheiro em papel, em Portugal pelo menos tão ubíqua, e há que reconhecer a funcionalidade dessa rede, por lá não encontrava, o que me intrigava… Até porque se a rede portuguesa era reputada como tão boa, talvez a dinamarquesa ficasse um pouco atrás… justificava-me no meu pensamento, refastelando-me também de certa forma. Mas pesquisei por uns bons dez minutos, fazendo figura de louco percorrendo aquele átrio de chegadas vazio de madrugada, com um mochilão às costas e uma mochila ao peito, estilo koala. Até que enfim encontrei o ATM mais escondido do mundo. Bem no cantinho do átrio, por baixo de umas escadas rolantes, junto a uma enorme parede de vidro com dez metros de altura, já numa área de pouca passagem e com um sem-abrido a dormir ao lado. Afinal também há aqui, pensei. A máquina e o sem-abrigo, infelizmente, claro. Mas como o país é seguro não estranhei a sua presença mas estranho era estar a máquina estar tão deslocada.


Nota que de nada me serviu nesta viagem...


















Depois de levantar umas notas, abri a porta e saí à rua, onde o frio me punha em sentido e energizando-me para esta viagem. Na fila do táxi estava uma família com dois filhos, ele de pele branca e ela de cor negra. O tom é indiferente, claro, e sempre foi, mas neste momento chamou-me à atenção por os pais deles serem também caucasianos. Achei lindo, incrível e mega avançado do ponto de vista social. Qual seria a probabilidade de me cruzar com este cenário socio-familiar, àquela hora da noite, naquele lugar, caso fosse raro? Praticamente nenhuma, pelo que assumi ser de facto a sociedade local muito muito muito avançada, mesmo. Um lugar onde a responsabilidade social é incorporada no elemento nuclear familiar, com compromissos mais longos que a nossa vida, como o de educar alguém. A Dinamarca apresentava-se como um lugar onde somos, acima de tudo, o que temos por baixo da pele. Então esta família na conversa, e esperando alguém, insistiu para passar à frente deles pelo que acabei por entrar no primeiro táxi. O carro era amplo, requintado e espaçoso, uma banheira autêntica, o que para táxi não é habitual. Aquele parecia ser o melhor táxi em que já viajei. Com um ecrã rectangular que ocupava uma grande parte do painel frontal, de onde um mapa GPS era desenhado indicando ao taxista o caminho, de um modo futurista, enquanto as suas rodas deslizavam por uma ampla auto-estrada de quatro faixas, tão estranhamente vazias àquela hora, que nos levava até ao centro da cidade. No início meti conversa com o taxista, que percebi ser imigrante pela forma de falar dele. É facto que o inglês é amplamente falado por lá, e ele manifestava dificuldade. Mas não querendo ele falar muito, eu também não continuei, até sentindo alguma antipatia inicial dele, desfeita também quando saímos da tal estrada e ele me indicou alguns pontos turísticos da cidade que novamente me parecia abandonada.

O destino era um hostel que encontrara na internet, no site hostelworld. E quando lá chegámos, ao ver  o valor da viagem no ecrã, passei-lhe a nota do banco de trás para o da frente, ao que ele se recusou terminantemente receber acenando-me com a mão - “No, no, no.” Estarrecido, indaguei o porquê. Ele disse-me que ali na Dinamarca só aceitavam cartões bancários e que não se usava mais dinheiro impresso. A princípio ainda achei ser um esquema do taxista para não me dar troco, porque, confesso estava a dar-lhe uma nota de bastante valor, pois a máquina só deu dessas. E já tendo visto várias situações no comércio, de fugirem às notas altas, ainda insisti um pouco que não tinha cartões comigo. Então com um frio a rondar os zero graus no exterior do carro, pedi um minuto ao taxista e saí a caminhar até ao hostel, onde procurei confirmar se assim era que se pagava um táxi do aeroporto, correndo o risco de fazer figura de desconfiado ou de turistão recém-chegado a uma utópica sociedade sem dinheiro. E assim era, confirmou-me o rapaz da recepção, que o dinheiro impresso praticamente fora tirado de circulação neste país. Apenas era usado de um modo residual. O hostel também não aceitou notas o que comprovava que ter um cartão era uma obrigatoriedade necessária para viver lá.

No dia seguinte caminhava por uma sociedade que me provocava uma sensação de utopia, despertando atenção, interesse e adrenalina em mim, ou uma versão economico-social da hormona talvez. Enquanto caminhava por ruas pejadas de bicicletas, sendo esta a cidade do mundo onde mais há neste momento, e onde o metro circulava sem maquinista, onde nas estações não havia bilheteiras com humanos, tudo era maquinal e sem torniquetes de acesso, onde o dinheiro era apenas de plástico, e onde molhava de modo ligeiro o cabelo e a roupa com os pingos de chuva do céu fosco e nublado tão típico da Europa mais setentrional, reflectia naquele modelo de sociedade. Seria este o melhor? Será que o capitalismo, a democracia e a república serão mesmo os menos maus ou que já temos vergonha de mexer no dinheiro, de o ver e cheirar, de o mostrar, de o usar, ou porque a preguiça e o chato em que a política se foi tornando para o público, não temos vontade de levantar da cadeira e ir até às mesas de voto. Assim como se tornou off-topic debater os prós e os contras de sermos mandados por reis e rainhas ao invés de votarmos com regularidade, munidos de livre arbítrio na pessoa que melhor achamos para liderar uma sociedade, ainda que os primeiros tenham a primazia da educação para este fim toldada e com conhecimento transgeracional acumulado. E qual a perda de privacidade numa sociedade em que todas as nossas compras ficam assim registadas associadas a um qualquer cartão, de um qualquer banco, de um qualquer dono accionista maioritário, de um qualquer país, que pode fazer o que entender com esses dados? A Dinamarca fazia-me pensar nisto tudo enquanto por lá andarilhava – numa nova visão do futuro, achando que este modelo se vai replicar daqui a uns anos ao restante globo.

Abraços e boas viagens !

Vosso,
João