sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Registo #3 - Mauritânia-Senegal

Saint-Louis, Senegal

Amdulah, Amdulah! (Graças a Deus! em árabe)

A sorte tem sido generosa comigo até aqui. Posso até dizer que a minha fé em Deus aumentou desde que saí de Lisboa. Muito provavelmente também tocado pela forte presença da religião em Marrocos e na Mauritânia. Afinal de contas o nosso Deus é o mesmo deles! Para quê tantas guerras? Enfim, isso é uma outra discussão com pano para mangas...

Cheguei a Noakshott, capital da Mauritânia com os 2 franceses que me deram boleia desde Marrocos, Layoune. Mohamed, do couchsurfing encontrou-se comigo num albergue na cidade. Estava com ele, estava com Deus, percebi em poucos instantes. Instalou-me num quarto que ele próprio aluga para receber amigos seus do couch surfing. Levou-me à casa da sua família, onde me sentei no chão com eles, confraternizando e vendo as notícias e a novela na TV (estão em todo o planeta!). Ofereceu-me peixe grelhado de almoço, improvisámos música com dois baldes, uma guitarra e batendo palmas. Que mais se pode ter numa recepção? Belisquei a pele e senti de novo a realidade do sonho que estou a viver.
Mauritania - Noakshott Mauritania - Noakshott - colores del cielo
Roupa típica da Mauritânia. Pôr-do-sol. Nouakshott, Mauritânia.

O quarto onde pernoito é humilde e fica num subúrbio de Noakshott - Sebkha. O prédio tem um grande átrio de entrada, partilhado pelos seus dois pisos e para o qual todos os quartos são virados. Famílias de quatro e mais pessoas vivem todas num só quarto igual ao meu, com cerca de 4mX4m. Vive-se mal e a áfrica negra está cada vez mais próxima e real.

A tradição do chá é muito forte na Mauritânia. Sentadas no chão, as pessoas reunem-se em torno de um fervedor de água, partilhando o chá em pequenos copos de "shot". É impossível recusar um convite para sentar e tomar um chá, pois tal é visto como ofensivo, e mesmo que se fique impressionado pelo modo como se lavam os copos há que sentar, beber e tentar comunicar mesmo que não falemos a mesma língua! É que, para lavar os copos, apenas os molham na mesma água, não potável, que usaram para lavar, pelos menos o dia todo! O chá é super concentrado e mega doce, e o modo como o preparam é algo único. Ficam vertendo o chá de um copo para outro, com uma mão a um metro de altura da outra, durante vários minutos até que se forme uma espuma no topo do copo. Diferente! É uma tradição cultural e todos os mauritanianos sabem fazer isto. Não quero recusar os convites mas sei também que não posso abusar desta bebida, pois muito provavelmente é feita com água da torneira, ainda que fervida.
Quarto na Mauritânia Acampamento Mouro
Quarto em Nouakshott. Tenda do lado da estrada onde certamente se bebe muito chá.

Durante a noite acordei com o barulho de baratas mexendo as patas por baixo do plástico que cobre o chão do quarto. Antes de me deitar borrifei o quarto com o pesticida Biokill e a meio da noite elas iam aparecendo por baixo do chão de plástico sem mais local para onde ir. Posso dizer que foi uma noite bem "barata" (Comé Xô Barata??) mas mal dormida. O meu visto na Mauritânia estava a acabar em dois dias, e então decidi ficar essas noites noites no Auberge du Sahara. As condições no quarto onde estava não eram as melhores e tinha urgentemente que encontrar alguém que estivesse também a descer até o Senegal. E assim foi! Amdulah!

Dois amigos espanhóis, do País Basco estavam a descer até Dakar! Que bem, que sorte senti ter. Graças a Deus, a Alá, o que quer que seja! Senti sorte. Estava apertado na Mauritânia, sem confiar muito no transporte que teria que fazer até à fronteira e com a maioria do pessoal nos albergues a descer noutras rotas, para o Mali e Burkina Faso. Mas deu certo! Ah ah! Os espanhóis eram muito gente boa. Jantámos juntos, bebemos uns copitos com malta francesa no hostel e rimo-nos muito enquanto tocámos guitarra e djambé pela noite fora... que bien!
Festa no Albergue
Festa no Albergue, com exercícios de equilíbrio à mistura!

Dia seguinte: rumo ao Senegal! E assim foi. Um dia atribulado, desgastante, mas foi possível. Saímos de Noakshott pelas 9h da manhã e chegámos a Rosso, cidade fronteiriça com o Senegal pelas 12h. Miúdos armados em guardas alfandegários apareceram do nada à nossa volta, querendo tratar da nossa papelada para cruzar a fronteira, a troco de uma comissão... por supuesto! Igor, um dos espanhóis vacilou e passou os nossos documentos. Caraças! No final, lá nos safámos e a troco dumas oguyas (moeda da mauritânia). Mas não aconselho que faças o mesmo, se cá vieres. Não dês ouvidos a ninguém que não seja polícia, e reza também para que eles sejam sérios. Tivemos os 3 sorte: Igor, Gregory e eu. A saída da Mauritânia foi um pouco atribulada mas fez-se. O pior estava agora para vir... a entrada no Senegal! De novo, pseudo-alfandegários chegam perto de ti para enganarem, mas é tudo falso. Não dês ouvidos a ninguém nesta fronteira. Fala apenas com polícias e oficiais da alfândega e reza para que tudo corra bem.

Tinham-nos dito que íríamos pagar muito para que o camião onde seguíamos viagem entrasse no Senegal, mas não, correu tudo bem. Pagámos cerca de 4 euros para entrar e cerca de 30 euros pelo seguro. Os pseudo-alfandegários queriam vender por muito mais. De qualquer das formas, é muito dinheiro para os locais. Aproveito também para vos apresentar o Frankenstein, ou antes, Franki, como abreviavam os dois bascos. Camião Iveco, comprado por Igor e Gregory em Espanha, e afinado às ncessidades da viagem: porta-cargas virou roulote, onde tinham uma cama de beliche, um fogão, bancada e vários armários de cozinha. Genial! Tinham tudo ali, viviam ali e eles é que alteraram tudo. Cobriram a estrutura metálica do porta-cargas do camião com espuma (aquela que fica sólida e serva e de isolante entre paredes) e cobriram tudo por fora com a coberta original verde de plástico grosso. O sistema de som estava na cabine e ia até ao quarto. Bombava a toda a hora Peter Tosh em alto som, e era por isso alimentado por quatro baterias! História virá por causa disto... ;)
Camiao Frankenstein - franky Franky!! Frankenstein - Grego!
Frankenstein a.k.a. Franki e Grego, no seu interior preparando o jantar.

Depois de 4 horas na fronteira, atrapalhados por trafulhas e maltrapilhos, e sempre com uma mão no bolso e outra na bolsa à cintura tateando o passaporte, seguimos para St. Loius, bela cidade colonial francesa no norte da costa senegalesa. Poucos kilómetros depois da fronteira, numa paragem para controle policial, a bateria, ou antes as baterias foram-se abaixo! Fomos 7 a empurrar o Franki. Dois polícias, 3 locais que pararam o carro na estrada, o Igor e eu. O Gregory rodava a chave na ingição até o camião ligar. E ligou, ao fim de algumas tentativas. A sua idade de 20 anos já não perdoa, e daqui para a frente viriam mais problemas...

Desta vez, o alternador. Estragou-se, e acomo consequência a bateria não recarrega. O lindo pôr-do-sol no saara no horizonte, e nós se bateria nem alternador! Ah pois, solução: colámo-nos que nem parasitas a uma Toyota Hiace com umas 20 pessoas, que seguia na nossa frente. Suas luzes nos ajudaram na a estrada mais esburacada e menos iluminada do meu Lisboa-Dakar! Fiquei admirado como o pessoal conduzia no Senegal. Bem mais certinho do que em Portugal: a carinha que seguia na nossa frente fazia os piscas sempre que ia curvar. Talvez devido às más condições da estrada, o pessoal fique mais solidário. Foram 80km de Rosso até St. Louis, com algum nervosismo, mas também firmeza e otimismo. Temos que estar assim! "Tudo vai pelo melhor", me dizia o Igor várias vezes ao longo da viagem e assim foi. Amdulah!
Senegal - sunset
Pôr-do-sol no Saara, Senegal.

Chegados a St. Louis, ligámos a um amigo de um amigo dos espanhóis. Ele recebeu-nos como se fosse um hotel de cinco estrelas. Ofereceu-nos uma enorme travessa de frango e cus-cus, deu um quarto enorme com casa-de-banho e ar condicionado a cada um de nós, deixou-nos usar a internet e ainda nos ajudou a arranjar o camião no dia seguinte. E nenhum de nós, o conhecia pessoalmente antes de chegar a St. Louis. "Quando a esmola é muita, o pobre desconfia" e até fico a filmar se este homem não tem negócios ilícitos em Espanha com o amigo dos espanhóis! Sei lá, me perdoem se estou a falar asneira!
Senegal - St Louis - foto com o anfitriao!
Anfitrião em St. Louis, Grego, Igor e eu.

Bom, tem tudo corrido mais do que bem até aqui. Uma verdadeira caixa de surpresas, tem sido esta viagem. Hoje rumamos a Dakar, a última etapa! INCH A LAH!

Um abraço do vosso amigo,
João Aguiar

Música: Peter Tosh - Legalize it, Manu Chao - El viento
Leitura: Lonely Planet West Africa